Síntese do XII Terraço em diálogo: "Entre mundos: A liberdade humana e as leis da natureza"

Seremos livres ou a liberdade é uma ilusão? No passado dia 18 de Fevereiro, aqueles que se deslocaram ao Terraço para o XI Terraço em Diálogo tiveram o prazer de assistir a uma palestra viva da entusiasta investigadora em Filosofia da Ciência Joana Rigato e o privilégio de receber, se não uma resposta final para esta questão magna da condição humana, pelo menos algumas linhas de luz que muito ajudam a esclarecê-la. O tema proposto, A liberdade humana e as leis da Natureza, foi objecto da sua recente tese de doutoramento e o desafio que a si mesma a investigadora se colocava, nesse dia, era o de traduzir numa linguagem acessível a reflexão filosófica realizada neste âmbito. Como contraponto científico à apresentação estaria o Professor e investigador do campo da História da Ciência e Prémio Pessoa, Henrique Leitão.

Enquadrando o tema, Joana Rigato começou por explicar o seu interesse pessoal por ele e como é um tema que nos implica a todos (o número elevado de pessoas presentes na sala, diga-se, parecia confirmá-lo), na medida em que o que está em questão em última análise é a responsabilidade moral da nossa acção.

Partindo do facto, facilmente constatável, de que todos somos condicionados na nossa acção, Joana Rigato dá voz à questão dramática que, como consequência, se impõe: será que temos as condições necessárias para sermos responsáveis por essa acção? Porém, vê-se na obrigação de, desde logo, esclarecer o que é filosoficamente a liberdade. Define-a, então, como um poder (o da escolha), sendo que a escolha, para ser livre e se chamar com propriedade escolha, se apresenta necessariamente como escolha entre pelo menos duas alternativas

A partir daqui o percurso escolhido foi o de traçar o arco histórico-teórico sobre o tema Determinismo versus Livre-arbítrio, explicitando, com grande clareza, as várias posições que se digladiaram e digladiam no campo filosófico-argumentativo, sobretudo no interior do quadro teórico da Filosofia Analítica, «escola» que assumidamente perfilha – para, no termo, encontrar uma resposta, na sua perspectiva, convincente, à questão de saber se somos ou não livres. Com uma condição de princípio: fazê-lo à luz da Ciência e dos seus dados mais recentes (a investigadora trabalha no centro de neurociências da Fundação Champalimaud), e até daqueles que se podem prever a partir do que já se sabe hoje…

As pessoas presentes menos próximas ou íntimas da Filosofia ficaram então a saber que existem três grandes posições em relação à questão: a Niilista, que nega toda a liberdade humana, a Compatibilista, que se satisfaz com uma forma reduzida de livre-arbítrio, e a Libertista, que defende que o ser humano é livre em sentido pleno, não sempre, mas frequentemente.

Com grande precisão e amplamente fundamentada (algo que não é possível ser neste resumo), Joana Rigato desmonta a argumentação das posições Niilista e Compatibilista, acabando a defender a posição Libertista.

O seu ponto de partida é o entendimento que as primeiras fazem do Universo: um sistema regido pelas leis de Newton. No primeiro caso (a posição Niilista), não haveria liberdade simplesmente porque, dadas as condições iniciais do Universo, e pertencendo o ser humano a esse Universo como ser de partículas materiais, todo o desenvolvimento posterior do sistema seguiria férrea e necessariamente o que estava previsto no Big Bang. Até o esforço para escolher e a crença na liberdade estariam determinados, desde o início. Num mundo determinista, o ser humano toma decisões, mas estas não poderiam ter sido outras. No segundo caso (a posição Compatibilista), o ser humano poderia considerar-se livre, não porque tivesse alternativa de escolha, mas porque teria controlo sobre a escolha nos casos em que lhe fosse permitido agir de acordo com uma decisão feita após ponderação, isto é, nos casos em que não fosse coagido (interna ou externamente). Simplesmente, para a investigadora, esta posição só consegue afirmar a liberdade à custa de uma reformulação do conceito de Livre-arbítrio, redução esta que lhe parece uma mera fuga à questão.

Passa então a expor porque defende o Libertismo, enfrentando desde logo os dois grandes problemas que se colocam: o primeiro, empírico, é o do risco de o libertismo contrariar a Ciência; o segundo, conceptual, é o da crítica dos Niilistas e Compatibilistas que afirmam que «se tivermos alternativas, perdemos o controlo e, deste modo, a pretensa liberdade».

Relativamente ao primeiro problema, a investigadora fala das evidências, provenientes da mecânica quântica, que revelam como as leis de Newton (determinísticas) não esgotam o modo de funcionamento do Universo. O nível mais fundamental da realidade, aquele que está na base de tudo, funciona de forma indeterminística (uma mesma causa pode ter variadas consequências, na mesma circunstância). A Biologia Quântica estuda a relevância deste tipo de fenómenos para sistemas macro, como o cérebro. Não escondendo que o debate entre neurocientistas continua em aberto, a investigadora vê razões sólidas nos resultados da Neurociência actual para apoiar aqueles que tomam o sistema cerebral como um sistema que, para além de ser descrito apenas probabilisticamente, funciona de facto (ao nível não da descrição mas da sua verdadeira natureza microscópica) de forma indeterminística.

Mais importante, porém, é a crítica segundo a qual o indeterminismo invalida o controlo, à qual Joana Rigato responde com aquilo a que em português se chama a Teoria da Causação pelo Agente: segundo esta, as razões ponderadas pelo agente da acção deixariam de ser a únicas causas  da acção, pois o agente, com a sua capacidade de agir, seria ele próprio também uma causa, faria acontecer. A investigadora esclarece que esta teoria contraria a abordagem reducionista que muitas vezes se considera ser necessária para descrever a causalidade no mundo: segundo o Reducionismo, o que acontece ao nível biológico é explicável a nível químico, e os fenómenos químicos são a consequência de causas físicas, e por aí adiante. 

Porém, há muitos exemplos na física que contrariam esta visão: há entidades, ditas emergentes, que não são inteiramente explicáveis pelas suas partes. Afirmar que o agente é uma entidade deste tipo não é, portanto, implausível cientificamente.

É então que a investigadora acrescenta um elemento crucial para a sua resposta ao problema da liberdade: o ser humano é livre, porque no Universo existe um fenómeno emergente inegável, «inapreensível» pela determinação biológica e física, inexplicável pela Biologia, Química ou Física Clássica: esse fenómeno é a consciência, a subjectividade. Joana Rigato não ignora que a consciência é emanada, emerge do cérebro, mas relembra que é mais do que o cérebro. A consciência é a entidade que tem o controlo sobre a escolha. Um controlo imprevisível, se contemplado «de fora», e não imposto fisicamente ao agente «por dentro».

Tal controlo é possível graças às alternativas que são tornadas possíveis pelo indeterminismo cerebral. Agir livremente, portanto, não implica quebrar as leis da natureza. Pelo que, conclui, vale mais defender a liberdade humana do que estar com aqueles que a negam.

Henrique Leitão teve, neste passo, a oportunidade de questionar a oradora. Questionou-a: 1. sobre a concepção que o Determinismo teria do Eu (subjectividade ou consciência) – se simplesmente seria possível dizer «eu», no interior desta perspectiva do problema; 2. sobre o modo como a Ciência foi usada na reflexão – se a investigadora tem uma concepção realista da Ciência ou se os modelos desta poderão não corresponder à realidade; 3. sobre o poder da Ciência – se, apesar de sustentar o seu pensamento na Ciência, ela não explicaria tudo. Joana Rigato respondeu prontamente e de modo fundamentado a estas questões. 1. Recordou que o problema, em relação ao Eu, provém mais do Reducionismo do que do Determinismo, i.e. assenta em tomar o Eu como a soma das partes (o que não é corroborado pela Ciência actual). 2. Assumiu ter uma concepção realista moderada da ciência, na medida em que acredita que as teorias científicas não são aleatórias, fazem uma descrição da realidade na 3ª pessoa de uma forma cada vez mais aproximada, permitindo uma compreensão cada vez mais aprofundada da mesma, tal como comprova o uso operacional da tecnologia, ao manipular a realidade com êxito. 3. Crê que a Ciência, explicando sempre mais, trará no futuro nova luz à questão, mas também que nunca preencherá o «buraco» do fenómeno emergente da consciência humana, no qual sustenta a tese de que o ser humano é livre.

Seguiram-se outras questões das pessoas presentes, a que Joana Rigato respondeu sempre com prontidão, fundamento e clareza.

Paulo Carvalho