O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos, o que tocámos com as nossas mãos acerca do Verbo da Vida, é o que vos anunciamos.
1.ª Carta de João 1, 1-4
Por Emília Almeida
A dada passo do Antigo Testamento, aparecem três anjos a Abraão. “Traga-se um pouco de água”, ordena, e logo se apressa para ir ter com Sara à tenda e pedir-lhe que amasse “três medidas de flor de farinha” para fazer bolos, indo ele mesmo buscar uma vitela “tenra e boa” que dá ao moço para preparar, assim como manteiga e leite. Pronto o repasto, os anjos comem sob a árvore onde se tinham recostado a convite do anfitrião, cuja prova máxima de hospitalidade e serviço reside justamente, e antes de mais, nessa refeição.
Momentos de refeição, de pausa e de convívio abundam no Novo Testamento, onde a transmissão da Palavra, a mensagem de Cristo, não se distingue essencialmente do testemunho vívido, e cheio de detalhes, do seu dia-a-dia. A par dos ensinamentos maiores, dos sermões, dos milagres, da força e das Estações da Fé, é sobretudo do quotidiano terreno de Jesus com os seus companheiros – os doze Apóstolos, os mais próximos de todos, mas não só – que os Evangelhos dão conta, apontando para a importância fundamental, se não fundadora, da nossa existência nos seus aspectos mais prosaicos e elementares. São as “alegrias sensíveis” de que fala Simone Weil em A Gravidade e a Graça (“comer, descansar, os prazeres de domingo”) que, afinal, todos conhecemos e partilhamos entre nós, uns com os outros, cerne da nossa vida comum – “o pão de cada dia de Lucas, que em Mateus se torna pão sobrenatural”, dirá Cristina Campo.
No texto “Sentidos Sobrenaturais”, do livro Os Imperdoáveis, lamenta a autora: “os possíveis iniciadores numa vida espiritual do corpo agora só sobrevivem à margem das estradas, em grutas totalmente imperceptíveis aos transeuntes. A liturgia, iniciadora soberana, só resplandece (…) em mínimos pombais perdidos, esquecidos nas metrópoles”. E interroga: “Quem ficará a testemunhar a imensa aventura, num mundo que confundindo, separando, opondo (…) corpo e espírito os perdeu a ambos e vai morrendo desta perda?”.
“Tempo di viaggio”
Em “Tempo di viaggio” (1983), filme que nos ocupa, é precisamente uma refeição à beira da estrada que suspende o fluxo de diálogo entre Andrei Tarkovsky e o poeta Tonino Guerra, incitando à reflexão. Reporto-me àquela que é a cena tutelar do trecho que aqui se apresenta e que talvez seja, também, o ponto de charneira na trama proposta pelo filme, um documentário produzido para o canal televisivo RAI que regista a viagem de ambos por Itália, em busca de cenários para Nostalghia, em que colaborarão como realizador e argumentista. Subitamente cessa o discurso e avança a música, colorindo o ar quente de verão. Dá para sentir a canícula – as roupas da gente que agora povoam o campo são leves e estão desabotoadas, em ambiente descontraído e familiar. Tudo indica tratar-se de uma tarde domingueira. Há uma menina que brinca, rodopiando um balão; um homem mais velho, talvez o avô, repousa à sombra; uma jovem rapariga, de saia florida e aparentemente íntima daqueles dois, entra e sai de cena; passam mais miúdos ao longe, uns a pé, outros de bicicleta; há carros estacionados junto à berma. Não se trabalha, o tempo parece ter-se dilatado e espraiar-se deleitosamente pela tarde afora, sem nenhuma pressa. Respira-se.
É um momento de paragem e abrandamento, intercalado por dois vazios: o do largo pavimentado onde, daí a nada, deixaremos a rua e a menina do balão; o do amplo descampado diante de uma igreja, em que nos detivéramos antes de a melodia se instalar e demorar por um bocado. Após um movimento de câmara de “zoom in” e “zoom out” sobre as arcadas da tal igreja e da sua frontaria, surge um enorme baldio. Será o pano de fundo para a pequena parábola que Guerra conta e que muda toda a atmosfera. Trata-se da história de um pintor seu conterrâneo que, procurando ensinar aos filhos como desenhar um círculo, com a mão direita, lhes propunha segurarem simultaneamente, com a esquerda, uma bola metálica, sentindo-lhe o peso e, ainda, a temperatura, e ficando a conhecer, pela concretude dos sentidos, através do gesto, a ideia de volume, de esfericidade, doravante neles gravada.
Em boa hora senta o filme todos à mesa, os dois autores (até então únicos protagonistas), juntamente com a tradutora que os acompanha assim como os locais que, prontamente e, aliás, com toda a naturalidade, acolhem os forasteiros no seu espaço e almoço. No que se refere à comida, haverá – claro está – pão e vinho, mas também marisco, esparguete e uma rotunda melancia, repartida entre os convivas, ilustres e anónimos.
Breves instantes atrás, antes do banquete reparador, Tarkovsky e Guerra pareciam não estar de acordo quanto à realidade circundante. Um acabava de chegar àquela que viria a ser sua morada de exílio; o outro conhecia como as palmas das mãos o solo natal, a amada terra que cantou em romagnolo, dialecto da comuna de onde provinha. Tarkovsky mostrava-se algo assoberbado pela sumptuosidade da arquitectura e da paisagem com que Guerra o queria presentear. Tinha dificuldade em digerir e aceitar em tão pouco tempo tanta magnificência (o barroco de Lecce, as escarpas dramáticas da costa amalfitana, a sucessão feérica de esplêndidas catedrais), quase insuportável para ele no ponto da jornada em que se encontrava. Precisava de menos. Estava saturado, não dispondo do vagar nem da distância para poder sintetizar tudo o que via. Era uma questão de dosagem, de sobreposse. Aquele tanto sobejava. Na linhagem da tradição filocálica, acreditava na nudez da beleza e no valor do despojamento. Farto de tamanho fausto, recebido em golfadas impossíveis de incorporar, queria era saber das pessoas, das suas ocupações, costumes e maneiras de estar.
Mas afinal um e outro falavam do mesmo, partindo embora de perspectivas e ângulos distintos: todas as coisas levam tempo a integrar, um lento e secreto labor que não se coaduna com a voracidade ociosa do turista, ávido de vistas e monumentos, sempre a querer “empanturrar-se” com mais. Desde logo porque há uma diferença substancial entre o que recebemos por interposto meio e aquilo que nós próprios vivenciamos. Mas, de igual modo, porque o que nos vem por via meramente intelectual, e não pôde ser interiorizado, falha em ser fecundo, criador. E isto porque toda a informação que não se sedimentou na nossa sede corporal – sede primeira das sensações, emoções, sensibilidade – se revela supérflua. Permanece estéril já que não foi transformada, já que não se fez carne, logrando assim tornar-se nossa, em função da memória viva que nos constitui desde a origem.
Eis que se desenha todo um preceito de como adentrar a experiência. Repto a uma sobriedade radical, grau zero de qualquer forma de conhecimento, aqui se adivinha uma discretíssima ética do apreender, que de maneira alguma se pode furtar ou adiantar-se ao vivido, procurando fintá-lo, mas pede que o desposemos, assumindo-o por inteiro na sua contingência. É um apelo ao ajustamento que, no entanto, abre para algo maior, porque não antecipável: aceitemos o limite das nossas capacidades e compreensão; não forcemos o ritmo de cada descoberta, o tempo particular do seu desabrochar; temperemos a curiosidade, renunciando à sofreguidão de tudo querer (saber ou tomar); recuemos ao mais simples, aí encontrando sustento e estabelecendo as bases para a nossa humana condição.
Laranja, peso, potência.
Que se finca, se apoia, delicadeza, fria abundância.
A matéria pensa. As madeiras
incham, dão luz. Apuram tão leve açúcar,
tal golpe na língua. Espaço lunado onda laranja
recebe soberania.
E por anéis de carne artesiana o ouro sobe à cabeça.
a ferida que a gente é: de mundo
e invenção. Laranja
assombrosamente. Doce demência, arrancada à monstruosa
inocência da terra.