Isabel

Fotografia de uma imagem da Igreja de Alegrete
Naqueles dias Maria pôs-se a caminho para a região montanhosa, dirigindo-se apressadamente a uma cidade de Judá. Entrou em casa de Zacarias e saudou Isabel. Ora, quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança estremeceu no ventre e Isabel ficou repleta do Espírito Santo. Com um grande grito, exclamou:
“Bendita és tu entre as mulheres, e bendito é o fruto do teu ventre! De onde me vem que a mãe do meu Senhor me visite? Pois quando a tua saudação chegou aos meus ouvidos, a criança estremeceu de alegria em meu ventre. Feliz a que acreditou, pois o que lhe foi dito da parte do Senhor será cumprido”.
[…]
Maria permaneceu com ela mais ou menos três meses, e voltou para sua casa.
 
Lc 1, 39-45;56 (Bíblia de Jerusalém, Edições Paulinas)

No despertar da consciência feminista jogam fatores de tomada de consciência pessoal e fatores de solidariedade com as outras mulheres. Da confluência dos dois tipos de factores nasce o desejo de uma sociedade radicalmente nova e com ele o desejo de uma mudança global e universal.

Duas mulheres, primas, ambas grávidas; uma mais velha do que a outra, uma grávida quando já nada o faria esperar. O texto de Lucas não diz que se abraçaram, mas é essa a representação que se instalou. Abraçaram-se, provavelmente como quem não se vê há muito tempo. Talvez como quem se alegra de ter alguém com quem se abrir, com quem falar.

Abraçaram-se. E ao som da voz que a saúda, Isabel sente o corpo – compreende com o corpo. O bebé mexe-se na barriga e Isabel junta as peças, familiariza-se com o mistério. Na voz do evangelista, Isabel compreendeu tudo, imediatamente.

Talvez sim. Ou talvez não.

Talvez tenha compreendido de forma confusa, difusa. Talvez tenha intuído que a sua história pessoal não era uma história isolada. E falou. Sem rivalidade, sem temor. Solidária.

[Não consigo deixar de ouvir um eco improvável: “No despertar da consciência feminista jogam fatores de tomada de consciência pessoal e fatores de solidariedade com as outras mulheres. Da confluência dos dois tipos de factores nasce o desejo de uma sociedade radicalmente nova e com ele o desejo de uma mudança global e universal.” (Maria de Lourdes Pintasilgo, Novos Feminismos, p. 24)]

Maria ficou com Isabel durante três meses (provavelmente, durante o resto da gravidez).

Devem ter falado de tudo e de nada. Devem ter falado do que estavam a viver, do que lhes estava a acontecer e que não compreendiam bem; do medo que sentiam, mas também do entusiasmo, e da esperança. Da espera.

Devem ter tagarelado sem parar. E devem ter rido.

[“Ah! irmãs, se nos rimos! E hoje (como tantas vezes) vos confesso a minha perplexidade perante o mundo, o meu medo, a minha raiva, a minha voracidade de tudo. O meu amor nunca cansado mas inútil. Desacerto das coisas e nas pessoas… E em boa verdade vos digo que: continuamos sós mas menos desamparadas.” (Novas Cartas Portuguesas, Terceira carta última, 25/11/71, pp. 384-385)]

Contada pelo evangelista, Isabel faz parte de uma história anunciada, reconhecida e louvada como história sagrada. Mas o que me liga a Isabel é a história anterior – uma história humana, que adivinho cheia de perplexidades.

[“Podemos, ao menos, tentar ver sinais para os próximos anos, para os próximos meses? Podemos pedir orientações claras nestes tempos conturbados? Podemos tentar ver alguns sinais a brilhar num período em que tudo parece ser absorvido num buraco negro histórico?
– E, todavia, temos de falar/ver/questionar/esperar/procurar.” (Maria de Lourdes Pintasilgo, Cultura política e cultura de mulheres, arquivo FCF, 0211.010 | 1991)]

O que admiro em Isabel é a forma como se inscreve na história, ao tomar a palavra.

[De novo, o eco improvável: “A tomada da palavra é, antes de tudo, para as mulheres, a possibilidade de dizer eu, de retomar a história de maneira única porque profundamente pessoal. (…). As mulheres dizem-se. As mulheres contam-se, no seu real e no seu imaginário.” (Maria de Lourdes Pintasilgo, Novos Feminismos, p. 43-44))]

O que comove em Isabel é a capacidade de dizer a fé, que o evangelista regista – dizer a fé no meio da perplexidade inevitável, que adivinho.

[“Poder «dizer a fé» equivale a reconhecer que aceitamos aquilo a que Maurice Bellet chama a «decisão do impossível». Nada de definitivamente certo, arraigado em nós, atravessando intangível as situações e os instantes. Mas sim uma inquietação permanente, um despojamento de verdades que tivéramos por definitivas, um desvendar dos nossos caminhos de fé aos outros, uma vulnerabilidade que se deixa expor aos novos momentos e suas intuições.” (MLP, Imaginar a Igreja, p. 38)]

Isabel antecipa-nos, mulheres e homens de todos os dias, a conviver com a perplexidade – uma perplexidade que dói desesperadamente (tanta injustiça, tanta violência, tanta dor, tanta desumanidade). Isabel antecipa-nos, mulheres e homens na vulnerabilidade das situações que não compreendemos, que não dominamos. Isabel antecipa-nos, mulheres e homens que tomamos a decisão do impossível. Antecipa-nos, mulheres e homens para quem a tomada da palavra/ação não pode esperar. Porque “A fé é a certeza de que o futuro irrompe no humano presente e que um dia o assumirá plenamente numa realidade paradoxalmente idêntica e outra.” (Maria de Lourdes Pintasilgo, Imaginar a Igreja, p. 114).

Antónia Coutinho (Tó)

A fé é a certeza de que o futuro irrompe no humano presente e que um dia o assumirá plenamente numa realidade paradoxalmente idêntica e outra.”

Música: Aissi com es sobronrada, canso de la maire de Dieu, Guiraut Riquier, séc XIII Alla Francesca | Brigitte Lesne, Pierre Hamon, Carlo Rizzo, álbum Mediterranea