Segunda Semana da Quaresma | da mulher “pecadora” a Hildegarda de Bingen

Proposta por Ticha Vasconcelos
Paolo Curtaz

Convidou-o um dos fariseus para comer consigo e, entrando em casa do fariseu, tomou o seu lugar à mesa. E eis que certa mulher, conhecida naquela cidade como pecadora, ao saber que ele estava à mesa em casa do fariseu, trouxe um frasco de alabastro com perfume. E colocando-se por detrás dele e chorando, começou a banhar-lhe os pés com lágrimas; secava-os com os cabelos e beijava os pés dele e ungia-os com perfume. Vendo isto, o fariseu que o convidara disse para consigo: “Se este homem fosse profeta, saberia quem e que tipo de mulher é esta que lhe está a tocar, porque é uma pecadora.”

Então disse-lhe Jesus em resposta: “Simão, tenho uma coisa para te dizer”. Ele disse: “Fala, Mestre.”  “Dois devedores tinham um prestamista: um deles devia-lhe quinhentos denários e o outro cinquenta. Não tendo eles com que pagar, perdoou aos dois. Qual deles o amará mais?”. Simão disse em resposta: “Aquele a quem perdoou mais dívida, creio eu.” Jesus disse-lhe: “Julgaste bem”. E, voltando-se para a mulher, disse a Simão: “Vês esta mulher? Entrei em tua casa e não me deste água para os pés; ela, porém, banhou-me os pés com as suas lágrimas e secou-os com os seus cabelos. Não me deste um beijo, mas ela, desde que entrou, não deixou de beijar-me os pés. Não me ungiste a cabeça com azeite, e ela ungiu-me os pés com perfume. Por isso digo-te que estão perdoados os seus muitos pecados, porque muito amou; mas aquele, a quem pouco se perdoa, pouco ama”. Depois disse à mulher: “Os teus pecados estão perdoados”.

Começaram então os convivas a dizer entre si: “Quem é este que até perdoa os pecados?” E Jesus disse à mulher: “A tua fé te salvou. Vai em paz.”

Lucas 7:36-8,3

tradução do grego por Frederico Lourenço
Pontos soltos para meditarmos… 

Cristo visita um fariseu, Simão. Cristo não faz distinção de pessoas, ele oferece a sua amizade e a sua proposta de vida a todos/as. O contexto tem como pano de fundo uma refeição.

  • “No quadro, irrompe a figura de uma mulher, que se, no início, é chamada de pecadora, o gesto dela para com Jesus a revela mais como uma mulher apaixonada. Lucas ilumina esta relação de Jesus com a mulher com o dom da misericórdia, uma das cores preferidas de sua narrativa. A sua atitude é o reconhecimento da pessoa de Jesus como o Messias, o Ungido de Deus.
  • Soltar os cabelos em público era, então, um gesto de independência.
  • Jesus não se retrai nem afasta a mulher, mas acolhe o gesto dela.
  • A mulher certamente já experimentara o amor libertador de Jesus e por isso agora lhe retribuía publicamente seu agradecimento.
  • A gratuidade da misericórdia de Deus na vida das pessoas liberta o amor,devolve a dignidade e abre novas perspetivas de futuro. É o que acontece com esta mulher e tantas outras e outros que se converteram assim em amigas e amigos de Jesus Cristo.
  • Aqui, transparece a novidade da atitude de Jesus. Ele não condena, mas acolhe. E foi a fé que ajudou a mulher a recompor-se e a reencontrar-se consigo mesma e com Deus. No relacionamento com Jesus, uma força nova despertou dentro dela e a fez renascer.
  • Na origem do discipulado de Jesus, está a experiência do Amor que desencadeia o seguimento da sua pessoa. É por isso que, na continuação desta perícope, o evangelista nos apresenta Jesus, continuando sua missão acompanhado por mulheres e por homens.”
 
Adaptado de Carlos Mesters e Mercedes Lopes, “O avesso é o lado certo”
Compaixão activa

A compaixão, capacidade humana de compreender as necessidades do outro e agir em seu benefício, é um valor/sentimento/atitude reconhecido em diferentes culturas como fundamental para o convívio em sociedade. Para cada pessoa e grupo social, ela ganha diferentes interpretações e formas, sendo normalmente associada a valores como: interdependência, respeito, solidariedade, amor, gentileza e cuidado. Nesse sentido, a compaixão não deve ser confundida com uma simples ação “por pena” ou uma ajuda pautada exclusivamente em interesses individuais.

Mas o que é então Compaixão Ativa?  (…) Muitas pessoas consideram importante nutrir a compaixão, mas não encontram caminhos palpáveis para tanto. Com base na psicologia inspirada em Jung, a organização Holos (2018) fala em compaixão ativa “como um modo de “ativar o nosso olhar-sentir-agir movido por compaixão para com nós mesmos e com os outros […], como a compaixão pode ser ativada a cada instante vivido, momento a momento, de forma leve, lúcida, criativa e significativa para o indivíduo e a coletividade”. E acrescentam: “Sabemos que ao longo da vida somos ensinados ou sugestionados a agir de acordo com valores que muitas vezes soam abstratos ou irreais para nós. […]  Parece-nos poder ser este o sentido da compaixão ativa”.

A compaixão pode ser ativada a cada instante vivido, momento a momento, de forma leve, lúcida, criativa e significativa para o indivíduo e a coletividade. “[…] A cada vivência, buscamos criar espaços para acolher as necessidades de nós mesmos e dos outros nas nossas mentes, corações e ações, exercendo a inteireza do nosso potencial humano e transformando diariamente as nossas relações”.

Adaptado de “Compaixão Ativa – Meditação, Arte e Filosofia para o cultivo da compaixão”
Da Compaixão à Beleza

Santa Hildegarda de Bingen via a música como parte essencial do ser humano, que, sem ela, não poderia viver. Entendia que a música reunia de forma única alma e corpo e que, de certa forma, colocava as pessoas numa dimensão paradisíaca: “[…] a música de júbilo suaviza os corações endurecidos, e extrai deles as lágrimas de compunção, invocando o Espírito Santo […] e as canções atravessam [os corações] de modo que eles possam compreender perfeitamente a Palavra; pois a graça divina assim age, banindo toda escuridão, e tornando luminosas todas as coisas […]”. (Hildegard de Bingen. Scivias)

As suas composições foram criadas para serem cantadas por mulheres e a temática do feminino é recorrente no texto, em referências ao corpo na prática musical e à própria musicalidade do corpo. Escreveu que a voz é como um instrumento musical de Deus, e que “[…] as palavras simbolizam o corpo, e a música jubilosa revela as atividades do espírito; a harmonia celestial  mostra-nos Deus, e as palavras, a humanidade do Filho de Deus”. (ibidem)

“Na música, pode-se ouvir o som da paixão que arde no peito […]. Podemos ouvir o botão tornando-se flor. Podemos ouvir o fulgor da luz espiritual a brilhar do céu. Podemos ouvir a profundidade do pensamento dos profetas. Podemos ouvir a sabedoria dos apóstolos espalhando-se pelo mundo inteiro. […] Podemos ouvir os mais íntimos movimentos do coração que caminha para a santidade. Podemos ouvir a alegria de uma menina diante da beleza da terra de Deus. Na música, a criação devolve ao Criador o seu júbilo e a sua exultação; e dá graças pela sua própria existência. Também podemos ouvir na música a harmonia entre pessoas que antes eram inimigas e agora são amigas. A música expressa a unidade do mundo como era no princípio, a unidade que é restaurada através da penitência e da reconciliação.” (ibidem)

Adaptado de Bruce Wood Holsinger, “The Flesh of the Voice: Embodiment and the Homoerotics of Devotion in the Music of Hildegard of Bingen” (1098-1179) 
Ícone da Virgem da Ternura, Kiev, Ucrânia

 

 

 

Ó Virgem gloriosa e bendita, Mãe da Ternura! 

Renova em nossos corações a constante vontade de seguir teu Divino Filho. 

Por tua intercessão permite-nos sentir a presença de Deus nas nossas vidas. 

Torna-nos observadores/as atentos a todos os cenários com os quais nos deparamos, em todas as coisas, em todas as pessoas. 

Dá-nos a graça de sentir a presença de Deus na simplicidade e na misericórdia, incessantemente, na abrangência de tudo, e livra-nos da presença do inimigo e das suas tentações. 

Que Deus reine em nossos corações e que a sua Divina presença seja constantemente sentida por nós em nossas vidas. 

Ámen