Últimos dias da Quaresma | Fotínia

 
Por Sónia Monteiro
«Dentro de mim há um poço muito fundo. E lá dentro está Deus.
Às vezes consigo lá chegar. Mas acontece mais frequentemente
haver pedras e cascalho no poço, e aí Deus está soterrado.
Então é preciso desenterrá-lo». 
Etty Hillesum
*

João 4: 5-42

5Chegou, pois, a uma cidade da Samaria, chamada Sicar, perto do terreno que Jacob tinha dado ao seu filho José. Ficava ali o poço de Jacob. 6Então Jesus, cansado da caminhada, sentou-se, sem mais, na borda do poço. Era por volta do meio-dia.
7Entretanto, chegou certa mulher samaritana para tirar água. Disse-lhe Jesus: «Dá-me de beber.» 8Os seus discípulos tinham ido à cidade comprar alimentos. 9 Disse-lhe então a samaritana: «Como é que Tu, sendo judeu, me pedes de beber a mim que sou samaritana?» É que os judeus não se dão bem com os samaritanos. 10Respondeu-lhe Jesus: «Se conhecesses o dom que Deus tem para dar e quem é que te diz: ‘dá-me de beber’, tu é que lhe pedirias, e Ele havia de dar-te água viva!»
11Disse-lhe a mulher: «Senhor, não tens sequer um balde e o poço é fundo… 12Onde consegues, então, a água viva? Porventura és mais do que o nosso patriarca Jacob, que nos deu este poço donde beberam ele, os seus filhos e os seus rebanhos?»
13Replicou-lhe Jesus: «Todo aquele que bebe desta água voltará a ter sede; 14mas, quem beber da água que Eu lhe der, nunca mais terá sede: a água que Eu lhe der há-de tornar-se nele em fonte de água que dá a vida eterna.»
15Disse-lhe a mulher: «Senhor, dá-me dessa água, para eu não ter sede, nem ter de vir cá tirá-la.» 16Respondeu-lhe Jesus: «Vai, chama o teu marido e volta cá.» 17A mulher retorquiu-lhe: «Eu não tenho marido.»
Declarou-lhe Jesus: «Disseste bem: ‘não tenho marido’, 18pois tiveste cinco e o que tens agora não é teu marido. Nisto falaste verdade.»
19Disse-lhe a mulher: «Senhor, vejo que és um profeta! 20Os nossos antepassados adoraram a Deus neste monte, e vós dizeis que o lugar onde se deve adorar está em Jerusalém.»
21Jesus declarou-lhe: «Mulher, acredita em mim: chegou a hora em que, nem neste monte, nem em Jerusalém, haveis de adorar o Pai. 22Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, pois a salvação vem dos judeus. 23Mas chega a hora – e é já – em que os verdadeiros adoradores hão-de adorar o Pai em espírito e verdade, pois são assim os adoradores que o Pai pretende. 24

Deus é espírito; por isso, os que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade.» 25Disse-lhe a mulher: «Eu sei que o Messias, que é chamado Cristo, está para vir. Quando vier, há-de fazer-nos saber todas as coisas.» 26Jesus respondeu-lhe: «Sou Eu, que estou a falar contigo.»
27Nisto chegaram os seus discípulos e ficaram admirados de Ele estar a falar com uma mulher. Mas nenhum perguntou: ‘Que procuras?’, ou: ‘De que estás a falar com ela?’
28Então a mulher deixou o seu cântaro, foi à cidade e disse àquela gente: 29«Vinde ver um homem que me disse tudo o que eu fiz! Não será Ele o Messias?» 30Eles saíram da cidade e foram ter com Jesus. (…) 39Muitos samaritanos daquela cidade acreditaram nele devido às palavras da mulher, que testemunhava: «Ele disse-me tudo o que eu fiz.» 40Por isso, quando os samaritanos foram ter com Jesus, começaram a pedir-lhe que ficasse com eles.
41E ficou lá dois dias. Então muitos mais acreditaram nele por causa da sua pregação, e diziam à mulher: 42*«Já não é pelas tuas palavras que acreditamos; nós próprios ouvimos e sabemos que Ele é verdadeiramente o Salvador do mundo.»

 

Quem é esta mulher que encontrou Jesus junto do poço de Jacob? Que nos diz hoje a sua história, sobretudo, neste tempo quaresmal?
Habitualmente, a Samaritana é recordada como aquela que teve cinco maridos e a quem Jesus perdoou. Mas será que é aqui que reside a centralidade desta passagem do Evangelho de João? Esta mulher é certamente uma figura importante tendo em conta que o Evangelista lhe dedicou um capítulo inteiro.
Repetidas vezes, o seu estado civil – “tiveste cinco e o que tens agora não é teu marido” – foi associado a uma condição de pecado.  No entanto, o texto é silencioso quanto ao que poderá estar na origem da sua situação. Todavia, se pensarmos no seu contexto histórico-social, seria muito difícil para uma mulher poder divorciar-se por vontade própria. Por outro lado, não podemos deixar de parte a possibilidade de viuvez. Acima de tudo, é importante libertarmos não só a mulher, mas também o texto do preconceito e excessiva moralização que foram sendo acumulados ao longo da história da sua recepção e interpretação.
O texto parece sugerir, todavia, que a mulher pudesse viver à margem da sua comunidade. De acordo com algumas anotações, normalmente as mulheres reuniam-se logo pela manhã para irem buscar água. Mas aquela Samaritana escolheu a hora de maior calor para ir sozinha ao poço de Jacob. (“Era por volta do meio-dia.”) Será essa marginalidade fruto da sua liberdade e decisão? Ou das circunstâncias sociais e culturais e históricas da época?
De qualquer forma, Jesus parece ver para além de tudo isto. Jesus está mais preocupado com a pessoa do que com as convenções. Não esqueçamos o espanto e possíveis comentários que os discípulos, que tinham saído para comprar alimentos, terão trocado entre si quando viram Jesus sozinho com uma mulher junto do poço. Para além de ser mulher e estar sozinha, é da Samaria. Sabemos que as relações entre Judeus e Samaritanos não eram as melhores. A própria Samaritana pergunta: «Como é que Tu, sendo judeu, me pedes de beber a mim que sou samaritana?» As tensões entre a Samaria (reino do Norte) e a Judeia (reino do Sul) remontam à tomada do reino do Norte pelos assírios no século VIII a.C. e à deportação dos samaritanos. Após o exílio, os Samaritanos começaram a ser vistos como pagãos por reverenciarem outros deuses.  
A intimidade que se gera neste encontro é iniciada por Jesus: “Dá-me de beber.” Seria de supor que um judeu, por exemplo, não bebesse do mesmo cântaro que um Samaritano para respeitar as leis de pureza. E aqui temos Jesus a pedir à mulher que lhe desse de beber. E para Jesus beber, teria de usar o mesmo cântaro da Samaritana. Jesus transpõe todas as fronteiras que, à partida, impediriam que aquele encontro tivesse lugar. Jesus quebra as barreiras culturais, sociais, históricas e religiosas que nos separam uns dos outros para se fazer próximo.
Desenvolve-se um diálogo, um dos mais extensos no contexto bíblico e, sem dúvida, o mais longo que Jesus trava com uma mulher. Para muitos autores, a Samaritana é primeira personagem do Evangelho a entrar numa conversa teológica com Jesus.
No centro do diálogo está o poço – lugar de encontro na tradição judaica e fonte de água, de vida.
É no encontro que Jesus se revela e que a Samaritana o reconhece como o Messias: ”Sou Eu,” descobrindo-se também a si própria.
Com efeito, o encontro está na origem daquela poderíamos considerar uma das mais importantes referências relativas à mulher Samaritana – e que tantas vezes é ofuscada pela hipervalorizarão do seu estado civil. Logo que percebe que Jesus é o Messias, a Samaritana sai a correr para anunciar a verdade que havia experimentado e que já transbordava em si. (O facto de ter deixado para trás o cântaro deixa-nos adivinhar a pressa).
Talvez a história da Samaritana seja importante não tanto pelas circunstâncias da sua vida, mas pela radicalidade e transbordância do encontro que experimentou e se manifestou na sua resposta e testemunho. Talvez possamos recordar a Samaritana não pela mulher dos cinco maridos, mas como aquela que acreditou e deixou que o seu coração se transformasse “em fonte de água que dá a vida eterna.”
Na verdade, a tradição do oriente não quis deixar passar em branco a história da Samaritana, a quem reconhecem como apóstola e santa. De acordo com a tradição popular ortodoxa, a Samaritana, depois do encontro com Jesus, passara a chamar-se Fotínia, que significa “a iluminada”. Existem várias lendas acerca da sua missão e martírio em Roma às mãos do imperador Nero. A liturgia ortodoxa celebra a sua vida no quinto Domingo da Páscoa.
O que nos pode dizer a experiência de Fotínia neste tempo especial de Quaresma, marcado pelos pilares da oração, do jejum e da caridade?
Segundo a escritora Emily Dickison, “A água ensina-se pela sede.” E na verdade, podemos dizer que é a “sede” de Jesus (“Dá-me de beber”) e da Samaritana (“Dá-me dessa água”) que conduzem a este encontro, revelação e missão/transbordância. Como diz o cântico de Taizé, é a sede que nos ilumina. Se, por um lado, a Samaritana deseja beber da água viva, por outro, Jesus deseja despertar e satisfazer esse desejo.
A sede e o desejo são condição de possibilidade para que a Samaritana permaneça junto do poço e compreenda a profundidade das palavras de Jesus. Esta sede e desejo são já oração vivida por e em cada um de nós.
A Fotínia relembra-nos que é por essa sede que somos conduzidas. E Jesus assegura-nos que “a água que Eu [vos] der há-de tornar-se [em vós] fonte de água que dá a vida eterna.” Acreditamos nisto? Acreditamos verdadeiramente no tanto que nos é dado em oração?
O poço é fundo – dizia a Samaritana – mas a sede de Deus é inesgotável.q

Como o veado anseia pelas nascentes de água,

assim por ti anseia a minha alma, ó Deus.

A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo.

Quando poderei entrar para ver a face de Deus?

Salmo 42

 

Conduziu-me para a entrada do templo, e eis que saía água da sua parte subterrânea  (…) Ele disse-me: «Esta água corre para o território oriental, desce para a Arabá e dirige-se para o mar; quando chegar ao mar, as suas águas tornar-se-ão salubres. 9Por onde quer que a torrente passar, todo o ser vivo que se move viverá. (…) e a vida desenvolver-se-á por toda a parte aonde ela chegar. (…) 12Ao longo da torrente, nas suas margens, crescerá toda a sorte de árvores frutíferas, cuja folhagem não murchará e cujos frutos nunca cessam: produzirão todos os meses frutos novos, porque esta água vem do Santuário….»

Ezequiel 47
*IMAGEM – Ícone de Jesus com a Samaritana | o ícone original pertence à Companhia de Jesus da Província Britânica.