Dia de Todos os Santos | 1 de novembro de 2022
[…] explica (Hannah Arendt) que, mesmo entre escombros, mesmo no tempo mais precário e escuro, não devemos remover de nós o direito de esperar. Temos de continuar a história, conspirando para que alguma iluminação chegue. E a autora sustenta que não será propriamente das teorias e dos conceitos que um clarão de sentido poderá irromper. Será sempre na forma mais concreta, através da humanidade de mulheres e homens como nós, nas suas vidas e obras, que poderemos ver pulsar melhor a luz, ainda que débil, “incerta e bruxuleante” [Jorge de Sena], mas a luz. Em cada época há vidas, mais conhecidas ou mais anónimas, a irradiar para os seus semelhantes, tornando a tarefa de viver uma aventura acompanhada. Ganhamos muito em escutar como flui e se torna singular, fulgurante e autêntico o grande caudal da vida.
José Tolentino Mendonça, “Que coisa são as nuvens” – excerto
Foi um Encontro de Esperança, a celebração, no Centro Nacional do Graal na Golegã, do dia 1 de Novembro, Festa de Todos os Santos e Santas. O convite para o Encontro Nacional lembrava-nos: “Somos o que fomos e o que seremos: o passado e o futuro nas nossas mãos!”. Sabemos que há 100 anos nasceu o Graal na Holanda. Mas, no passado dia 1, festejámos os 65 anos do Graal em Portugal. Éramos mais de cinquenta vindas de todos os pontos do país. As que não puderam vir tornaram-se presentes das mais variadas formas: cartas e emails que continuam a chegar, imagens, mensagens sonoras, etc. Somos muitas e somos tantas nesta Rede Graal que nos vai tecendo…
Um magnifico Graal iluminado (feito pela Manuela Afonso para a celebração dos nossos 50 anos…) retomou de forma bem visual o seu espaço na parede da sala da Golegã e acolheu quem chegava. Um Graal cheio de luz estava à nossa espera de forma simbólica e simultaneamente concreta: “a humanidade de mulheres como nós”. É isso mesmo que somos: as nossas vidas, os nossos trabalhos, as famílias que criámos, os nossos compromissos este é o cálice do Graal que somos. Somos simplesmente ramos de uma trepadeira, de um Graal que nos transcende. Tal como o Espírito. Por isso nos fomos apresentando ou reapresentando umas às outras, contando e recontando a história, a vida, os projetos, as preocupações, falando deste Graal que nos congrega.
Senti-me parte de um corpo. Um corpo vivo, sequioso de abraços, beijos, olhares cúmplices, visualizando caras e intuindo corações. No meio de tempos tão difíceis, de incerteza quanto ao futuro, de precariedade e dificuldades (tantas!) escolhemos tornar visível a esperança, “continuando a nossa história”. Tantas caras, renovadas na alegria, mas, sobretudo muitas caras novas, tantas jovens, (outras um bocadinho mais velhas, a caminhar para os trinta), cheias de frescura, afirmando como grupo a sua pertença ao Graal de tantas formas e por tão variados caminhos (CSW, Girl Effect, projetos variados…). Assumindo-se nos seus gestos e palavras, enquanto grupo bem diferenciado e autónomo. Renovando-se e renovando-nos. Enquanto se apresentavam brindaram-nos com um magnífico pano-de-obra (como se diz em Cabo Verde) desenhado em flores: um real traçado a preto e branco em pano cru ia recebendo palavras-chave das distintas apresentações destas jovens mulheres. Ainda durante a tarde, além de depoimentos individuais, os diferentes grupos de pertença (Coimbra, Porto, Foz, Golegã, Parede, Lisboa) fizeram apresentações no coletivo: contando a sua história enriquecida de imagens, nomeando aquelas de nós que já partiram para Deus, mas sempre afirmando o presente e orientando-nos para o futuro, tornando visível “um clarão de sentido”, como afirma Tolentino de Mendonça. Assim somos: “vidas, mais conhecidas ou mais anónimas, a irradiar para os seus semelhantes (…) tornando a tarefa de viver uma aventura acompanhada”.
A Eucaristia levou-nos à paróquia da Golegã. Claro que houve depois almoço partilhado – uma verdadeira celebração! Muitos risos, exclamações, surpresas, memórias e futuros a emergirem naquele presente tão festivo…
Já durante a tarde mostrou-se e contou-se o que está a acontecer no Graal. Os diferentes projetos, alguns “filhos/filhinhos” de projetos anteriores (K. Popper), projetos a emergir, parcerias concertadas, trabalho em rede. Tanto futuro! A apresentação do arquivo digital do Graal em Portugal – ainda e sempre em processo, mas podendo desde já ser consultado – foi um momento de alegria e espanto por tão depressa se ter dado forma a um projeto tão importante para nós e simultaneamente exemplar para o Graal noutros países. Nas palavras de uma de nós, “foi muito bem apresentado” pela Susana Martins, a arquivista digital, que no fim fez apelo a uma salva de palmas à Fátima Grácio [que coordena o projeto], lembrando variadas vezes, de formas diferentes, como era necessário todas enviarmos os materiais que temos para o arquivo”. De facto, “ganhamos muito em escutar como flui e se torna singular, fulgurante e autêntico o grande caudal da vida”. Os 65 anos de vida do Graal em Portugal.
O texto tão inspirador (em epígrafe) de Tolentino de Mendonça foi o mote da apresentação final do grupo de pertença de Lisboa. Faz sentido usá-lo para relatar este Encontro/Celebração. Uma enorme taça transparente e água permitiu que “navegassem” as velas dos diferentes elementos do grupo, ao som da canção “Ilumina” de Maria Betânia.
A oração no final do dia chamou-nos para a Luz que são “Todos os Santos e Santas”. Muitos nomes de mulheres do Graal foram rezados em ladainha. Elas habitam as nossas vidas, simplesmente numa outra dimensão: a dimensão da Luz Plena. Com elas “poderemos ver pulsar melhor a luz, ainda que débil, incerta e bruxuleante” [Do texto em epígrafe].
De regresso a casa cada uma trouxe uma colorida flor de papel dobrada em “origami” pela Isaura. Essas flores habitavam, no final, os “ramos da trepadeira” que foi sendo construída ao longo do dia. As flores habitam-nos: são a Esperança, “cette petite fleur qui n’a l’air de rien du tout” de Charles Péguy (“essa pequena flor que não parece nada”).
Foi mesmo um Encontro Extra-Ordinário! Regressamos agora ao “ordinário”, ao quotidiano das nossas vidas, lutas e esperanças, à diversidade de caminhos de que somos feitas. Porque o “extraordinário” acontece sempre dentro do “ordinário”, na ordem e sequência dos dias. Mas nesta Festa de Todos os Santos e Santas, celebrando os 65 anos do Graal em Portugal, experimentámos de modo extraordinário a Luz que nos habita…
– Ticha Vasconcelos
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