Eis o que diz o Senhor: «Se tirares do meio de ti toda a opressão, os gestos de ameaça e as palavras ofensivas, se deres do teu pão ao faminto e matares a fome ao indigente, brilhará na escuridão a tua luz e a tua noite será como o meio-dia. 

Por Helena Valentim

Paths of Glory, que recebeu o título português “Horizontes de Glória”, é um filme anti-épico sobre a Primeira Grande Guerra, que se inscreve numa tradição cinematográfica anti-militar. Realizado por Stanley Kubrick em 1957, nas palavras de João Lopes (cf. Blogue “A Janela Encantada”), “é, mais do que um filme de guerra – e sobre uma guerra ou contexto particular –, um filme sobre a desumanização causada pela máquina militar, e os comportamentos pouco humanos de algumas das pessoas no seu comando […].”

Na primeira parte do excerto proposto – até ao 1’55 – o Coronel Dax (interpretado por Kirk Douglas) e o Major General Georges Broulard (Adolph Menjou), das forças francesas concentradas na fronteira franco-alemã, confrontam-se num diálogo em torno da questão central do filme: a indiferença da elite do exército relativamente ao sacrifício de vidas humanas nas trincheiras da guerra. Dax, homem íntegro que não se furta a confrontar os seus superiores sempre que a consciência lho dite, é incompreendido e acusado de idealista. No fundo, em causa está o confronto entre, por um lado, o poder, corruptível e ambicioso e, por outro, a integridade e a ética.

Na segunda parte – a partir de 1’56 – temos uma cena intensa, em que uma mulher alemã (Christiane Harlan), prisioneira, canta para um grupo de soldados franceses. Enquanto, no lado de fora do espaço em que se encontravam, o Coronel Dax os escuta, é avisado de que se deve deslocar imediatamente com os seus homens para a frente de batalha. Responde depois de um breve silêncio, pedindo ao oficial que lhes dê mais alguns minutos antes de os chamar. Afasta-se visivelmente meditativo e logo retoma a marcha, de forma firme e resoluta, num momento que Kubrick acompanha com um som marcial, prenúncio do cerco perpetuado e, esse sim, invencível que é a guerra.

Este filme surpreendeu quando foi estreado, por ir ao arrepio do que era a norma de então. Aqui, o “mal” não está do lado dos inimigos (i.e., dos alemães), mas sim do lado tido como “certo”, em particular, nos próprios comandantes, os “senhores da guerra”.

Assim é. Não há como abordar a violência e a guerra senão de um modo desencantado. Na guerra, as razões de viver convertem-se em razões para morrer. Os “princípios” definham perante a excecionalidade das circunstâncias; sente-se que a realidade cruel ganha tonalidades fortes demais para se ficar nos meios tons.

Deste modo se entra numa espiral reativa e autojustificativa da parcialidade imposta pelos acontecimentos, que, ou lhe pomos um fim inusitado e criativo, ou nos leva à autodestruição. É que só pode ser em processo de autodestruição que se está numa guerra, pois, com o “inimigo” que empurramos para o precipício, vamos sempre nós, arrastados: estamos ligados na violência, somos um mesmo, em espelho; o campo de batalha é comum, já que ninguém se sente verdadeiramente vivo a caminhar entre cadáveres e despojos.

felizes os pacíficos, que suspendem a violência
e reparam as redes de logradas fainas
(ai a guerra, mãe da pobreza e irmã da morte)
[…]
José Augusto Mourão