O Senhor disse a Abrão: “Deixa a tua terra, a tua família e a casa de teu pai e vai para a terra que Eu te indicar.”
Génesis 12, 1
Por Paulo P. Carvalho e Helena Valentim
A paz que vês na paisagem foi um dia esculpida pela convulsão do magma. Aquilo que irrompe como terramoto e absurda guerra teve aspeto de ordem, um dia. A imagem do amado era inquestionável até ao dia em que, na morte, se tornou pedra questionante. A imagem de Deus era inquestionável até ao dia em que o seu poder desapareceu do ídolo. Há um deserto a percorrer depois das imagens derruídas. A imagem do humano é uma dessas imagens. Abraão percorreu o seu deserto depois de abandonar Ur. No deserto, um povo trocou as cebolas do Egipto por uma liberdade e uma promessa precárias. Jesus, um obscuro membro desse povo, teve de percorrer o deserto dos gestos vazios do Templo, e talvez um profundo sentimento de abandono, para chegar à fraternidade. Que incluía a imagem dos abandonados por Deus. Que, por serem insuportáveis aos olhos, eram remetidos para fora do olhar.
O cinema de Forugh Farrokhzad não desvia o olhar desses. Deixa-se olhar por eles. E quem aí olha leva o espectador a questionar as suas ideias de Paz, de Bem, de Justiça, de Pureza. «E se não houver lado de fora e lado de dentro? E se esta for a tua casa depois de atravessares o teu deserto?»
Forugh Farrokhzad (1934 –1967) foi uma poetiza e realizadora iraniana. Os seus poemas eram formalmente ousados e tematicamente inovadores. Também controversos, por incluírem pela primeira vez no persa o tópos da intimidade feminina. Procurou outras formas de expressão artística, como o cinema. O documentário A casa é negra (1962) integra a Nova Vaga iraniana e resulta de 12 dias de filmagens numa leprosaria. Farroukhzad morreu num acidente de automóvel aos 32 anos em circunstâncias não inteiramente esclarecidas.
[…]
Deus da palavra e da promessa,
dá ao nosso desejo a graça
de se querer para além da sua imagem
e da clausura que o arme em circo
dá ao nosso desejo a graça de se tornar fluxo, rio, exílio
ou vaga de palavras
que nenhum lugar codifique
ou territorialize
Deus, como nós nómada,
que a tua presença se realize de lugar em lugar,
de estação em estação
e que a tua palavra se enraíze
tu que és a palavra e a promessa
realizadas em Jesus e no Espírito
e nos fazes cantar